25 agosto 2010

Loucura Morfina - Por Leandro Vieira

(Colaboração gentilmente cedida pelo compadre Leandro Vieira)

Um dia desses eu estava andando na Rua 25 de Março, no centro velho de São Paulo, perto do terminal Parque Dom Pedro II. Um lugar largado, parece um grande quarto de adolescente – substitua as meias sujas por lixo de toda a espécie, constituído basicamente pelo resto do Mercado Municipal, também vizinho da região. Era tarde da noite e não tinha quase ninguém acordado nas calçadas...

De repente, aparece uma mulher de cabelos curtos, metade pretos, metade loiros, com o rosto cheio de marcas da idade. Destacavam-se os olhos azuis que pareciam pintados com caneta marca-texto. Camisa preta com apenas um botão fechado – o suficiente para não mostrar os peitos pequenos – e calça também preta, sem bolsos e sem passar na água há um bom tempo. Carregava uma sacola grande com um cobertor grosso e bem pesado.

Ela desembesta a falar. Diz que foi expulsa de casa pelas irmãs mais velhas, “duas malvadas, ruins de alma”. Duas meias-irmãs na verdade, filhas do primeiro casamento de sua mãe. As duas têm a vida torta. A mais velha foi criada por uma tia-avó. Quando esta morreu, deixou uma boa casa no centro de Mogi das Cruzes, cidade da grande São Paulo. A herança se transformou num barraco na favela e em drogas, muitas drogas.

A segunda casou-se com um policial que ficou louco depois de ser mordido por um cachorro com raiva – comeu utensílios domésticos, foi afastado da corporação e acabou se enforcando no meio da sala. Sem dinheiro, sem emprego, sem marido, ela caiu no mundo do tráfico. Chegou a ser presa e, segundo as últimas informações, está por aí.

A mãe, ela não vê há uns 5 anos. Se ainda estiver viva, está bem velhinha. Foi enfermeira por muito tempo no Hospital das Clínicas até conseguir uma aposentadoria que, se não é uma fortuna, não a deixava em apuros. A mulher nunca soube da mãe desde que saiu de casa – diz que tem vergonha e receio de procurá-la depois de tanto tempo.

O resultado de tudo isso é que, de Mogi das Cruzes, ela foi parar no centro de São Paulo, altas horas da noite, sem lugar para dormir e sem um tostão no bolso. Se fosse para se vangloriar de alguma coisa, ela poderia falar com certeza: era o ser humano mais limpo de toda a redondeza. E articulava bem as palavras - as frases faziam perfeito sentido em todas as sete vezes que ela repetiu os relatos acima, sempre na mesma ordem.

Acredito que, se ela estivesse em outro lugar, teria consciência de que basta falar uma vez só. Mas ali não. Quem mora na rua, pelo menos naquela, não tem como ser são da cabeça. Se ficar são, no meio daquela sujeira toda, não vive. A loucura lá é como uma proteção. É como a mãe que tira forças sabe-se lá de onde para salvar o filho. E é como a morfina, que não cura a causa mas alivia a dor. A loucura ali é o anjo da guarda. O que seria daquelas pessoas, em plena faculdade mental, se vissem todos aqueles carros carregados de frutas do Mercadão, sem poder levar uma maçã que seja, a não ser quando aparece aquele trocado salvador?

Ali, e em tantos outros lugares, a loucura não é uma patologia, é a sopa quente das noites frias.

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